quarta-feira, maio 24, 2006

Deambulações

Num prisma de outro tempo
Sinto a alma esvair-se
De tudo e de nada
De angústias e certezas
De lágrimas e sorrisos
De dores e paixões
Que brotam desconexas
E nos deixam exaustas
Do muito que desejamos
Do tudo que perdemos
Da anedota em que nos tornámos
Para fugir ao tédio
Que nos avassala nos dias.
E as noites que mais não são
Do que o desejo inconfessado
Da terra infértil e murmurante
Que se esconde por detrás da máscara
Que se cola à nossa pele.

domingo, maio 14, 2006

A Catedral Verde


Bernardo olhou à sua volta rodopiando sobre si mesmo. As vetustas e majestosas árvores erguidas verticamente, como se de colunas se tratasse, lembravam-lhe uma catedral verde que tivesse brotado do interior da terra. O chão pardacento onde se abriam enormes fendas, deixadas pelo estio prolongado, pareciam mosaicos que um deus tivesse desenhado pacientemente em horas de lazer. Sentiu uma paz desusada, quase etérea que o deixou entorpecido. Encostou-se a uma árvore e deslizou lentamente até ao chão. No mesmo instante, volumosas gotas de água começaram a desprender-se do céu e cairam no solo soltando grãos de poeira que se espalharam à sua volta. O ambiente tornou-se pesado e quase irrespirável. Levantou-se apressadamente e correu como um louco tentando em vão encontrar uma saída. Os troncos das árvores sucediam-se indefinidamente como que escarnecendo dele. Por mais voltas que desse, a enorme catedral continuava ali geometricamente absurda. Parou por instantes tentando dar rumo aos seus pensamentos já desvairados. O anoitecer caminhava a passos largos para a noite que se avizinhava fria e escura, cada estalido assumia agora proporções gigantescas e maquiavélicas que o aterrorizavam. No meio de uma enorme confusão mental ainda conseguiu pensar “Eu ando em círculos, o melhor é pôr os neurónios a trabalhar!”. Tentou visualizar, em retrospectiva, tudo o que lhe tinha acontecido até ali e desse modo acalmar-se. Tal como se tinha precipitado sem aviso, a chuva também cessou do mesmo modo. Um cheiro acre que lhe causava nauseas subia do solo agora lamacento. Prometeu a si próprio seguir em linha recta sem hipótese de qualquer distração. Cada árvore ficava agora para trás como pensamento que se arrumasse ordenadamente numa pequena gaveta e aí ficasse fechado sem hipótese de fuga.
- Bernardo, estás maluco? Há uma hora que andamos à tua procura...ao menos podias responder! Fartámo-nos de te chamar. Pensámos até em chamar os mergulhadores para te irem buscar ao fundo da lagoa.
Bernardo sentou-se no único banco de jardim que se encontrava ali à saída do bosque estrategicamente à espera de ser usado como local de repouso por aqueles que se aventurassem naquela terra inóspita. Olhou os amigos com uma expressão de alegria e alívio e em tom de zombaria...
- Vocês são uns exagerados. Admitam lá...que sem mim nem saberiam sair daqui.

quinta-feira, maio 04, 2006

Os amigos

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.

Eugénio de Andrade