domingo, junho 17, 2007

Excerto do conto "Os Amantes"

Voltas a repetir os gestos que me fascinavam no bungalow do Fred. Voltas a retrair-te e a entregar-te da mesma maneira, a deixar-me na boca o mesmo travo de orquídea, de sândalo queimado e de bruma salina. Acabas agora de me puxar para ti, num ritmado movimento que ninguém te ensinou, que retomas sempre com igual cadência e de que nunca inteiramente te aperceberás. Estou já de novo a olhar-te nos olhos, a sorver lentamente a leve crispação da tua boca. Começa o mar a castigar-te os flancos e a resumir, em poucos minutos, uma sonâmbula evolução de muitos milénios, convertendo em pedra o que era peixe, desfazendo em areia o que foi pedra, incorporando cada vez mais pó no volume das suas águas…Passam entretanto pelo céu nocturno cavalgadas de nuvens magnéticas; entre as estrelas mais longínquas estabelecem-se pactos efémeros; e morrem aves nos pântanos da Lua, sob a luz que da Terra lhe enviamos. Não sei se principias a gemer, se é a lenha mais alto a crepitar…o teu último suspiro nem o consegues dominar: derrapou no pavor de ser um grito, suicida-se na curva do meu ombro.

David Mourão-Ferreira em Os Amantes e outros contos

E ao ler este conto veio-me logo à cabeça esta música de Serge Gainsbourg, este poema de Paul Verlaine declamado pelo nosso poeta Luís Eusébio, este poema de Fernando Pessoa no blog do Parrot e ainda este quadro de Gustav Klimt.

9 comentários:

PortoCroft disse...

Cara Maite,

David Mourão-Ferreira, no seu melhor. :)

Resto de noite feliz.

magu disse...

Uma admirável passagem em que a metamorfose se exprime através de inúmeras metáforas utilizadas, que longe de pesarem, conferem ao trecho e às imagens assim criadas uma grande beleza, graças ao seu jogo com o Tempo e ao gosto pelo Eterno. O corpo da mulher metamorfoseia-se em rochedo e areia enquanto o do homem se torna maré cheia. O efémero torna-se duração. A eternidade transmite-se ao homem e à mulher que se amam. O contraste entre o finito e o infinito, o efémero e o eterno. Uma longa metamorfose de palavras e a mulher movendo-se entre o mar e o vento.

Uma boa semana para si

Alberto Oliveira disse...

Cara Maite:

Para além do óptimo excerto do conto "Os Amantes" de David Mourão Ferreira, gostei imenso das associações que lhe vieram à cabeça. E que revelam o seu bom-gosto.

Tenha um belo final de dia.

Maite disse...

Caro Portocroft

Uma escrita prenha de erotismo. Digamos que conhecia apenas o DMF poeta e estou a gostar de descobrir este DMF.

Uma boa noite para si

Maite disse...

Caro/a Magu

O que posso acrescentar a esta sua análise? nada, a não ser dizer que é perfeita :)

Uma boa semana para si também

Maite disse...

Caro Legível

Penso que estes links "emolduram" muito bem este excerto do conto :)

Bem regressado seja :)

Tenha uma boa noite

mixtu disse...

maite(zinha)
esta passagem é excelente, umas pinceladas,,, um movimento... mas a riqueza está na ligação que depois fazes... a da música é perfeita...

abrazo europeu e boa leitura :)
e sim... eu cheguei ao fim e relacionei com a blog, emails...

Maite disse...

Caro mixtu(zinho)

São espantosas as ligações que cada um é capaz de fazer perante um mesmo estímulo :) Eu gosto de todos (os links). Haveria outros naturalmente.

abrazo europeu :)
eu não...afinal não sou assim tão ecléctica :)))))

Maite disse...

Este blog anda muito estranho!!! (não actualiza!) porque será?!