domingo, março 19, 2006

Numa curva do tempo

Era uma manhã cinzenta de inverno, do céu de chumbo desabava uma chuva intensa que, aliada ao vento norte, tornava quase impraticável qualquer avanço pela rua meio inundada. Laura entrou na estação do Rossio, não sem antes verificar as horas no relógio emoldurado na fachada do edíficio neo-manuelino. Subiu os degraus que dão acesso à estação, comprou o bilhete para Sintra e olhou o painel do horário dos combóios. Faltavam apenas cinco minutos. Estava impaciente. Desde que se levantara, tinha aquela sensação estranha de intranquilidade. “Só podemos ser doidos, subir a Serra de Sintra até ao Castelo dos Mouros num dia destes.” – pensou. Mas aquela “quase” escalada estava combinada e ninguém quiz adiá-la por causa de uma “chuvinha molha tolos”. Sentou-se e olhava insistentemente o relógio de pulso que o Afonso lhe tinha oferecido no último aniversário, como se cada minuto fosse uma eternidade. Finalmente o combóio chegou, entrou na carruagem, havia pouca gente e muitos lugares vazios. Sentou-se logo no primeiro banco à direita disposta a recostar-se, o mais confortavelmente possível, e descansar mas não sem antes observar, como era hábito seu, as pessoas com quem partilhava o espaço.
No seu lado esquerdo, no outro banco, um homem de fato escuro e semblante sombrio olhava a chuva através da janela, quando um corvo roçou uma asa no vidro num voo quase suicida, enquanto o homem afagava o dorso de um gato que levava ao colo. Nesse instante o gato olhou para ela e, instintivamente, um arrepio de horror lhe percorreu o corpo. O gato era enorme, todo preto e tinha apenas um olho, no lugar do outro havia apenas um buraco. Afastou o olhar, na ânsia de esquecer aquela horrivel criatura. Mais à frente dois homens conversavam de forma amena e circunspecta mas Laura só acabou por ouvir “...elementar, meu caro Watson.” e calaram-se. No banco oposto um homem pequeno e já meio calvo, de bigode preto, bem aparado parecia entretido com a ponta dos seus sapatos pretos de verniz e a espaços batia com a bengala no chão. Laura pensou: “Aquele deve estar a conversar com as suas celulazinhas cinzentas”. No primeiro banco estava sentado um jovem casal de namorados tão entretidos um com o outro que se esqueceram, com certeza, que havia ali mais gente. Ouviam-se gritinhos e risos abafados por toda a carruagem.
Laura olhou para o relógio, tinham passado quinze minutos e continuavam no túnel. “Estranho” – pensou – “ já deviamos ter saído do túnel!” De súbito, as luzes apagaram-se e uma escuridão de breu abateu-se sobre a carruagem. O coração de Laura disparou, abriu desmesuradamente os olhos numa tentativa vã de ver algo e por breves instantes um silêncio penetrante caiu sobre todos. Nada bulia, até que um grito lancinante rompeu aquele estranho silêncio e a luz apareceu, encandeando-a. Os três homens da frente levantaram-se e dirigiram-se para a frente da carruagem. Inclinaram-se sobre o lugar onde a jovem estava sentada e exclamaram: “Está morta!”. Um corte profundo no pescoço de onde jorrava ainda sangue fresco tinha sido a causa da morte. Olharam para o parceiro que se encontrava ao lado, pálido como uma folha de papel. Dois dos homens entreolharam-se num tom de desafio e franzindo o sobrolho...
“Menina, o combóio vai partir. Horas de acordar.” – Laura abriu os olhos, olhou o velho chefe da estação e só se lembrou de perguntar: “Que horas são?”.

26 comentários:

Clarissa disse...

Maite...pelo que percebi é a tua estreia em contos...e que bem que correu!!!
Há umas pequenas sugestões que, com mais tempo, te darei...se não levares a mal...é mais uma questão de sonoridade e repetição de palavras. Mas por favor não tomes como desincentivo, é que neste grupo, as sugestões são bem vindas, são uma forma de crescer.
Gostei da forma como desenvolveste a acção...e aquele pormenor do gato...fantástico!!
Ainda bem que entraste no desafio :)

Ipslon disse...

he pa! rapariga n me assustes assim!
que susto!
hehe
bela noite sim senhor...

lindo

Anónimo disse...

adorei a discrição dos passageiros Maite... deliciosa!
um beijinho

José Pires F. disse...

Bem… minha querida amiga, este é com certeza o primeiro de muitos contos que te lerei e hoje ainda voltarei para o ler com outro vagar e fazer o respectivo comentário.
Mas para já;
PARABÉNS!

Parrot disse...

Maite,

Muito bem, muito bem.....
De gatos, já sabia que gostava, agora, de Corvos???!!!!!!
lol

Isso tem algum significado???

Parabéns, agora vou ler os outros e já cá volto.

Boa noite Maite

PS - A minha tarde de Poesia foi muito interessante. Gostei muito, e existe por aí muitos autores pouco conhecidos com excelentes textos. Chamaram-me a atenção um autor do Porto chamado Eduardo Roseira, e as declamações de uma senhora chamada Maria Teresa (falava Português do Brasil), muito bom.
Entretanto, se puder, no próximo dia 21, 3ª feira, dia mundial da Poesia, no café Guarani no Porto. Se puder vá, pelo que vi, vai gostar muito.....eu não vou ter possibilidade.

Raquel Antunes disse...

Excelente! Gostei do suspense e das descrições tão bem "pintadas".
A fronteira entre o cá e o lá!
O gato sem olho e depois o pesadelo ;)

Maite disse...

Cara Clarissa
Como referi, foi o meu primeiro conto. E, com certeza, estou aberta a sugestões e nem me passa pela cabeça ver isso como um desincentivo mas sim como uma crítica construtiva. Penso que tem razão quando fala da sonoridade e repetição das palavras.

Boa noite para si :)

Maite disse...

Caro Ipslon
Assustei-o?! :) Era esse o meu objectivo. Penso que houve gente que se assustou. Um conto à moda de Edgar Allan Poe.

Boa noite para si :)

Maite disse...

Cara Conteúdo Latente
Ainda bem que gostou :)
A descrição é óbvia. Gosto destes personagens e de histórias de detectives.

Boa noite

Maite disse...

Caro PiresF
Obrigada.
Parece que li por aí algures que está a ver o seu Sporting.

Boa noite :)

Maite disse...

Parrot
Corvos, não gosto. E apesar de gostar de gatos, deste em específico não.

Já vi que gostou do seu entardecer de poesia :)
Gosto de assitir a encontros de poesia mesmo que seja de autores desconhecidos. Infelizmente estou longe do Porto e não poderei estar lá também :(

Boa noite para si

Maite disse...

Cara Ashfixia
Penso que também me excedi nas descrições.

Boa noite para si :)

José Pires F. disse...

Ora, ora Maite. Cá estou eu com uma leitura mais cuidada e por isso mais vagarosa como se impõe, e que não me foi possível da primeira vez, pelo motivo que o Parrot indiscretamente divulgou.
São as paixões minha amiga e o Sporting é uma delas.

Um conto policial, com personagens várias, incluindo algumas bem conhecidas, e para terminar um desfecho imprevisível e muito bem conseguido.
Gostei da descrição dos pormenores, importante neste tipo de contos e por estar muito bem feita.

Como disse no meu primeiro comentário este é o primeiro de muitos que te lerei, o primeiro, que é sempre o mais difícil, já cá está e agradou, e a continuidade limará as arestas que estão a mais.

Por isso, e a partir de agora, conto passar por este canto para me deliciar com outras histórias.

Obrigada pela tua participação, um grande, grande abraço e parabéns.

Maite disse...

Caro PiresF
Obrigada pelo seu comentário. Creio, principalmente, que falta limar muitas arestas nesta minha aventura de contar contos.

Imagine que, de repente, este blog começou a ter problemas. Ontem voltou a desaparecer e tive que o republicar. Desapareceram novamente os links e a campanha contra o massacre de focas bébés.

Bom dia para si

Clarissa disse...

Maite...
Voltei para reler e trata-se mesmo de uma questão de sonoridade...penso que basta fazeres uma leitura em voz alta para te aperceberes e torneares determinadas palavras.
Espero que continues neste grupo pois os desafios são para continuar e a tu fazes parte de um círculo de escrita criativa...
Beijocas :)

José Pires F. disse...

Maite!

De facto o Blogger anda com problemas. Também o meu já desapareceu e só regressou com a republicação.

Esperemos que eles resolvam os problemas que já se arrastam há mais de oito dias.

Um abraço.

Parrot disse...

Maite,

Os problemas pareçe que são gerais....

Beijo

b' disse...

boa tarde

devia ser bonito, devia
o poirot e o sherlock holmes fechados num comboio com um crime misterioso para resolver :)

e que saudades de apanhar o comboio na estação do rossio e atravessar o túnel :(((

@:)

Alberto Oliveira disse...

Clarinda estava finalmente e pela primeira vez em Lisboa. Em Santa Apolónia perguntou a um polícia que transporte tomar para chegar ao Rossio. No autocarro, não havia lugares vagos e por isso, sentiu-se incomodada com tantos passageiros que se acotovelavam e a empurravam de tal modo que pensou por diversas vezes que não acabaria a viagem sem cair. Ao sair no Rossio, por pouco não ficou sem a pequena mala presa no interior do carro, por não ter sido rápida ao saltar. Felizmente que o motorista voltou a abrir a porta. Numa fila de taxis que aguardavam clientes, disse ao primeiro motorista «Para a Suiça...» O motorista não a deixou acabar a frase, pediu-lhe para entrar no carro e levou-a ao Aeroporto. Num dos balcões foi mais explícita; «Devo apresentar-me hoje ao trabalho na Pastelaria Suiça; onde fica?» Simpática, a funcionária da TAP aconselhou-a a apanhar um autocarro que tivesse o destino de Santa Apolónia na bandeira. Antes, devia sair no Rossio. Enervada, Clarinda deixou passar o Rossio e achou-se em Santa Apolónia novamente. Jurou nunca mais fazer perguntas... e se sabia onde era o Aeroporto...
Três meses depois, estava a trabalhar em Geneve numa linha de montagem de autocarros encomendados pela CARRIS.


Gostei muito do seu conto. Parabéns.

Alberto Oliveira disse...

Só mais uma coisa; poderá parecer estranho que no pequeno conto-comment que lhe deixei (a brincar, claro!) não ter obedecido ao mote em causa. Isso tem uma explicação razoável; Clarinda, de tão pobre que era, nem relógio tinha. Mas quando no ano seguinte veio a Portugal passar férias, já. Aqui fica a explicação.

Tenha uma boa noite.

Maite disse...

Cara Clarissa
Obrigada pela sugestão. Sugestões são sempre bem-vindas.
Sempre pronta para desafios :)

Boa noite :)

Maite disse...

Caro PiresF
Então é mesmo do blogger!!
Lembro-me que uma vez abri a sua Rua dos Contos e tinha desaparecido. Na altura pensei que tinha desistido daquele blog.

Boa noite para si :)

Maite disse...

Parrot
Um dia chegamos aqui e não há nenhum blog!!
Seria triste :(

Boa noite :)

Maite disse...

Cara B'
Até já estou a imaginar a conversa :)
- Elementar, meu caro Watson! ...é um detectivezeco Belga.
- Caro Holmes, Hercule Poirot não se deixa intimidar facilmente. E agora retiro-me para reflectir. Senhores, desejo-lhes uma boa noite. (faz uma pequena vénia inclinando ligeiramente o chapéu)

Boa noite para si :)

Maite disse...

Caro Legível
Hilariante o seu conto :) É admirável a maneira como consegue dar uma vivacidade imensa aos pequenos episódios do quotidiano. É um privilégio para mim recebe-lo no meu blog e sinto-me especialmente honrada por ter deixado aqui um conto.

Mas é claro que a Suiça é a Suiça. Quando nos encontramos lá parece que estamos num reino encantado. Imagino que os emigrantes que lá tabalham não digam o mesmo. Porque em serviço eles (os Suiços) não brincam nem deixam brincar.

E gostei que a Clarinda já tivesse relógio quando veio cá de férias :)

Boa noite para si :)

Clarissa disse...

Beijocas de boa noite :)