quarta-feira, março 01, 2006

The day after II


No dia seguinte ninguém morreu. ...
A tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor de que, desde a entrada do novo ano...não havia constância de se ter dado em todo o país um só falecimento que fosse. ...
Embora a palavra crise não seja certamente a palavra mais apropriada para caracterizar os singularissímos sucessos que temos vindo a narrar...a ausência da morte, compreende-se que alguns cidadãos, zelosos do seu direito a uma informação veraz, andem a perguntar-se a si mesmos...que diabo se passa com o governo que até agora não deu o menor sinal de vida. É certo que o ministro da saúde, interpelado à passagem...havia explicado aos jornalistas que, tendo em consideração a falta de elementos suficientes de juízo, qualquer declaração oficial seria forçosamente permatura. ... Poderia ter-se deixado ficar por aqui,....mas o conhecido impulso de recomendar tranquilidade às pessoas a propósito de tudo e de nada, de as manter sossegadas no redil...levou-o a rematar a conversa da pior maneira. Como responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me escutam que não existe qualquer motivo para alarme, ...
No comunicado oficial, difundido já a noite ia adiantada, o chefe do governo...terminava afirmando que o governo se encontrava preparado para todas as eventualidades humanamente imagináveis, decidido a enfrentar com coragem...a extinção definitiva da morte...


As Intermitências da Morte de José Saramago

É verdade que eu sempre fui um pouco adversa às obras de Saramago, não pelos motivos que muito por aí circularam, mas porque não tinha paciência para a sua escrita. Depois recomecei a lê-lo com gosto (até porque penso que nestes últimos anos a sua escrita se modificou e se tornou mais solta) e agora estou a ler este e dou comigo a admirar-lhe o sentido de humor.

5 comentários:

Alberto Oliveira disse...

É verdade que Saramago está mais solto, mais leve mas creio que é um processo de escrita. É o retorno às origens. Tal como na pintura, o autor abdica do pormenor exaustivo e parte para o purismo das formas e ... das letras.

Parrot disse...

Maite,

Hoje foi "dose dupla" e faz muito bem. Já tinha saudades.:)

Saramago....nunca consegui ler nenhum livro até ao fim. Nos meus tempos de estudante, já lá vão alguns anos, um certo dia, numa feira do livro, encontrei o Saramago que acabava de lançar o livro “Levantado do Chão”. Pela sua postura, pela sua personalidade fiquei curioso e acabei por comprar o livro. Não consegui ler. Não gostei da forma como escrevia, a pontuação, as frases longas…..desisti. Passados alguns anos ofereceram-me o “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e a situação repetiu-se, se bem que notei algumas diferenças na escrita. Depois disso nunca mais tentei.

Ontem aconselharam-me o “Ensaio sobre a Cegueira”, agora, chega vc com este texto, do qual gostei….não sei.

Boa tarde

Maite disse...

Caro Legível
Como o retorno à simplicidade pode ser um caminho longo e um processo demorado! Como diz, um regresso às origens, ao essencial, àquilo que realmente importa.

Maite disse...

Pólux
A ficção e a realidade misturam-se por vezes de uma maneira, diria até, "promíscua". Às vezes até apetece dizer "tirem-me deste filme", tal a semelhança. Não sei se algum governo está preparado para enfrentar um caso de pandemia. Vacinas?! Será que vão chegar para todos?
O texto de Saramago é recente e retrata de forma esplendida a postura dos politícos perante situações de difícil solução.

Maite disse...

Parrot
Aconteceu-me precisamente o mesmo que a si no que respeita aos livros de Saramago. Nunca conseguia lê-los até ao fim e digo-lhe que até houve alguns livros que me esforcei muito mas acabava por desistir. O primeiro que consegui ler todo foi "Todos os nomes" e a partir desse já consegui ler outros.