terça-feira, julho 22, 2008

O Melro


1. melro (pelo perfil) :) 2. ninho de pintassilgo
Norte de Portugal - Julho 2008
O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:"Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul!… Comei!"

E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na Cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.
E o velho abade, lívido d'espanto,
Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora …
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!…
Guerra Junqueiro in A Velhice do Padre Eterno
NOTA: Li algures que alguns melros, rouxinóis e outras aves envenenam os filhos quandos lhos metem em gaiolas, mas que nem todos o fazem (um facto interessante porque revela que nem todas as aves da mesma espécie têm o mesmo tipo de comportamento embora nós, humanos, nos tenhamos habituado a olhá-las como comunidades e não como individuos com carácter próprio)

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